Esse tem sido um ano muito triste. Muitos grandes nomes se foram. Até então os nomes para os quais eu rendi minhas homenagens tinham pouca relação com o mote do blog. Preferi então deixar de lado Ronnie James Dio, Peter Steele e outras figuras que mudaram meu mundo. Mas hoje não posso deixar de mencionar.
A morte de José Saramago silencia uma das vozes mais estridentes e portentosas da razão. Apesar de ser um fã razoavelmente recente do trabalho dele, devo admitir que emergi muito rápido na sua obra. Fui realmente tragado. Ele é muito de esquerda pro meu gosto. Mas isso não importa. Importa a razão. Razão que falha naqueles que acham que a gente pode ler, entender e, imaginem vocês, apreciar a obra do finado senhor ainda no colégio. Agora, finou-se. Fica a obra. Mais um de volta ao ciclo do nitrogênio.
Deixo aqui um trecho do seu último livro, de 2009, chamado Caim. O velhinho era certeiro e muito, muuuuuuito cruel.
"Há uns três dias, não mais tarde, tinha o senhor dito a abrãao, pai do rapazito que carrega às costas o molho de lenha, Leva contigo o teu único filho, isaac, a quem tanto queres, vai à região do monte mória e oferece-o em sacrifício a mim sobre um dos montes que eu te indicar. O leitor leu bem, o senhor ordenou a abrãao que lhe sacrificasse o próprio filho, com a maior simplicidade o fez, como quem pede um copo de água quando tem sede, o que significa que era um costume seu, e muito arraigado. O lógico, o natural, o simplesmente humano seria que abrãao tivesse mandado o senhor à merda, mas não foi assim. Na manhã seguinte, o desnaturado pai levantou-se cedo para pôs os arreios no burro, preparou a lenha para o fogo do sacrifício e pôs-se a caminho para o lugar que o senhor lhe indicara, levando consigo dois criados e o seu filho isaac. No terceiro dia da viagem, abrãao viu ao longe o lugar referido. Disse então aos criados, Fiquem aqui com o burro que eu vou até lá adiante com o menino, para adorarmos o senhor e depois voltamos para junto de vocês. Quer dizer, além de tão filho da puta como o senhor, abrãao era um refinado mentiroso, pronto a enganar qualquer um com a sua língua bífida, que, neste caso, segundo o dicionário privado do narrador desta história, significa traiçoeira, pérfida, aleivosa, desleal e outras lindezas semelhantes." in Caim, p.79, Ed. Cia das Letras, São Paulo, 2009.
A morte de José Saramago silencia uma das vozes mais estridentes e portentosas da razão. Apesar de ser um fã razoavelmente recente do trabalho dele, devo admitir que emergi muito rápido na sua obra. Fui realmente tragado. Ele é muito de esquerda pro meu gosto. Mas isso não importa. Importa a razão. Razão que falha naqueles que acham que a gente pode ler, entender e, imaginem vocês, apreciar a obra do finado senhor ainda no colégio. Agora, finou-se. Fica a obra. Mais um de volta ao ciclo do nitrogênio.
Deixo aqui um trecho do seu último livro, de 2009, chamado Caim. O velhinho era certeiro e muito, muuuuuuito cruel.
"Há uns três dias, não mais tarde, tinha o senhor dito a abrãao, pai do rapazito que carrega às costas o molho de lenha, Leva contigo o teu único filho, isaac, a quem tanto queres, vai à região do monte mória e oferece-o em sacrifício a mim sobre um dos montes que eu te indicar. O leitor leu bem, o senhor ordenou a abrãao que lhe sacrificasse o próprio filho, com a maior simplicidade o fez, como quem pede um copo de água quando tem sede, o que significa que era um costume seu, e muito arraigado. O lógico, o natural, o simplesmente humano seria que abrãao tivesse mandado o senhor à merda, mas não foi assim. Na manhã seguinte, o desnaturado pai levantou-se cedo para pôs os arreios no burro, preparou a lenha para o fogo do sacrifício e pôs-se a caminho para o lugar que o senhor lhe indicara, levando consigo dois criados e o seu filho isaac. No terceiro dia da viagem, abrãao viu ao longe o lugar referido. Disse então aos criados, Fiquem aqui com o burro que eu vou até lá adiante com o menino, para adorarmos o senhor e depois voltamos para junto de vocês. Quer dizer, além de tão filho da puta como o senhor, abrãao era um refinado mentiroso, pronto a enganar qualquer um com a sua língua bífida, que, neste caso, segundo o dicionário privado do narrador desta história, significa traiçoeira, pérfida, aleivosa, desleal e outras lindezas semelhantes." in Caim, p.79, Ed. Cia das Letras, São Paulo, 2009.
2 comentários:
Parte de uma entrevista de Saramago:
http://vodpod.com/watch/3857719-jos-saramago-em-entrevista-o-escritor-fala-sobre-a-morte-na-2-parte-
Racionalidade e lucidez, mas de uma doçura e sensibilidade que não se encontra sempre. Reparem no quão profundo é o que ele disse no discurso do Prêmio Nobel.
E mais,"O que se espera aos 63 anos?...", diz Saramago. Aos 63 anos ele encontrou Amor, numa mulher 30 anos mais jovem.
Eu proponho uma reflexão. Há momentos em que a vida fica realmente muito dura e por esforços máximos que se faça não nos é possível evitar perdas e danos, ou mesmo repará-los. Quem já não se perguntou: "O que se espera mais?". Pois se pode esperar muito mais, não? Principalmente, quando ousamos ser diferentes.
Hoje, infelizmente se perde um ponto de luz sábia e recaimos de vez na escuridão da ignorancia.
Depois do Ensaio sobre a Cegueira, vejo cada vez mais as pessoas como bestas animalescas. Se antes achava possivel, com sua morte tenho essa certeza.
Espero que suas reflexões sobre a natureza humana permaneçam vivas pelo tempo. E sua escrita cortante porem doce, e levemente em tom vingativo continue nos tocando por dentro.
Adeus Saramago.
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