sexta-feira, 18 de junho de 2010

Perdas irreparáveis

Esse tem sido um ano muito triste. Muitos grandes nomes se foram. Até então os nomes para os quais eu rendi minhas homenagens tinham pouca relação com o mote do blog. Preferi então deixar de lado Ronnie James Dio, Peter Steele e outras figuras que mudaram meu mundo. Mas hoje não posso deixar de mencionar.

A morte de José Saramago silencia uma das vozes mais estridentes e portentosas da razão. Apesar de ser um fã razoavelmente recente do trabalho dele, devo admitir que emergi muito rápido na sua obra. Fui realmente tragado. Ele é muito de esquerda pro meu gosto. Mas isso não importa. Importa a razão. Razão que falha naqueles que acham que a gente pode ler, entender e, imaginem vocês, apreciar a obra do finado senhor ainda no colégio. Agora, finou-se. Fica a obra. Mais um de volta ao ciclo do nitrogênio.

Deixo aqui um trecho do seu último livro, de 2009, chamado Caim. O velhinho era certeiro e muito, muuuuuuito cruel.

"Há uns três dias, não mais tarde, tinha o senhor dito a abrãao, pai do rapazito que carrega às costas o molho de lenha, Leva contigo o teu único filho, isaac, a quem tanto queres, vai à região do monte mória e oferece-o em sacrifício a mim sobre um dos montes que eu te indicar. O leitor leu bem, o senhor ordenou a abrãao que lhe sacrificasse o próprio filho, com a maior simplicidade o fez, como quem pede um copo de água quando tem sede, o que significa que era um costume seu, e muito arraigado. O lógico, o natural, o simplesmente humano seria que abrãao tivesse mandado o senhor à merda, mas não foi assim. Na manhã seguinte, o desnaturado pai levantou-se cedo para pôs os arreios no burro, preparou a lenha para o fogo do sacrifício e pôs-se a caminho para o lugar que o senhor lhe indicara, levando consigo dois criados e o seu filho isaac. No terceiro dia da viagem, abrãao viu ao longe o lugar referido. Disse então aos criados, Fiquem aqui com o burro que eu vou até lá adiante com o menino, para adorarmos o senhor e depois voltamos para junto de vocês. Quer dizer, além de tão filho da puta como o senhor, abrãao era um refinado mentiroso, pronto a enganar qualquer um com a sua língua bífida, que, neste caso, segundo o dicionário privado do narrador desta história, significa traiçoeira, pérfida, aleivosa, desleal e outras lindezas semelhantes." in Caim, p.79, Ed. Cia das Letras, São Paulo, 2009.

2 comentários:

Anônimo disse...

Parte de uma entrevista de Saramago:

http://vodpod.com/watch/3857719-jos-saramago-em-entrevista-o-escritor-fala-sobre-a-morte-na-2-parte-

Racionalidade e lucidez, mas de uma doçura e sensibilidade que não se encontra sempre. Reparem no quão profundo é o que ele disse no discurso do Prêmio Nobel.

E mais,"O que se espera aos 63 anos?...", diz Saramago. Aos 63 anos ele encontrou Amor, numa mulher 30 anos mais jovem.
Eu proponho uma reflexão. Há momentos em que a vida fica realmente muito dura e por esforços máximos que se faça não nos é possível evitar perdas e danos, ou mesmo repará-los. Quem já não se perguntou: "O que se espera mais?". Pois se pode esperar muito mais, não? Principalmente, quando ousamos ser diferentes.

V. disse...

Hoje, infelizmente se perde um ponto de luz sábia e recaimos de vez na escuridão da ignorancia.
Depois do Ensaio sobre a Cegueira, vejo cada vez mais as pessoas como bestas animalescas. Se antes achava possivel, com sua morte tenho essa certeza.
Espero que suas reflexões sobre a natureza humana permaneçam vivas pelo tempo. E sua escrita cortante porem doce, e levemente em tom vingativo continue nos tocando por dentro.
Adeus Saramago.