sexta-feira, 19 de março de 2010

Finalismo e Intencionalidade

Quando estudamos ciência, temos um péssimo hábito de dizer que "células fazem isso" ou que "receptores decidem aquilo". Na verdade, não, células e receptores não decidem fazer isso ou aquilo. Simplesmente há uma enorme cadeia de eventos que são meramente mecanísticos, portanto sem qualquer intenção; equilíbrios químicos, alterações de voltagem, interações moleculares, e eles acontecem da forma que acontecem, pois durante milhões de anos de evolução e seleção natural, as coisas ficaram como são e não há nenhuma finalidade nisso.

É difícil lidar com isso, uma vez que fomos criados numa tradição cultural em que sempre deve haver um motivo para os acontecimentos, sejam eles quais forem. Não há motivo. As coisas acontecem do jeito que acontecem e são como são. Ponto final.

Isso dificulta demais as nossas explicações, pois sempre procuramos um modo de colocar as coisas de forma compreensível. Assim, acabamos por sacrificar o rigor pra sermos entendidos. Pior pra todo mundo: pro aluno, que aprende uma coisa potencialmente danosa pro seu entendimento futuro de outros conceitos; pior para o professor, que terá que conviver com suas metáforas eternamente sendo replicada nas provas, e para quem for usuário dos conhecimentos desses formandos num futuro próximo.

Papo de doido? Pois leiam essa reportagem aqui e me digam se isso não é fruto de simplificações equivocadas, mal-feitas e absurdamente infelizes - apesar de bem intencionadas. A célula tumoral passa a ter poderes de James Bond e parece que fármacos e tumores brincam de Tom & Jerry. Tudo bem, vão me dizer que é para o público leigo, que nós cientistas temos que sair da nossa torre de marfim e levar o conhecimento para o público. Ótimo. Mas a que custo?

Com o aumento do acesso à rede, qualquer pessoa lê qualquer coisa (vide post abaixo) e acha que pode sair por aí dando pitacos e ser um especialista. Esse é outro problema. Sério, mas em outro lugar. Aqui nesse post a pergunta é: conseguimos extirpar todo o finalismo e intencionalidade das nossas palavras, explicações e conceitos? Belíssimo desafio... mas vale tentar.

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