quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Mundo chato

     Há mais de dez anos, quando entrei na faculdade, tive aulas com um professor biruta, todo amarrotado, avental encardido e cheio de furos de ácido sulfúrico. A birutice dele se manifestava não só pela sua postura pouco convencional, mas pelas suas palavras excêntricas - pra dizer o mínimo. Dentre muitas coisas que, honestamente, não me lembro, algumas ficaram gravadas a fogo nas minhas lembranças. Uma delas é de que o mundo estava ficando chato.
     Segundo o ilustre professor Orlando, há um número mágico no mundo no que se refere a aglomerações humanas: 4%. Essa é a proporção de gênios, políticos honestos, mulheres bonitas, e o número necessário de pessoas numa mobilização para que ela seja ouvida. Diante disso, ele dizia que se os alunos da faculdade se mobilizassem, conseguiriam mudar uma serie de coisas que estavam mal-encaminhadas na época. Assim, como naquele tempo estávamos na casa de 800 alunos, algo em torno de trinta e poucos seria suficiente pra causar o barulho necessário.
     Não é preciso dizer que ele vivia frustrado, pois conseguia atrair não mais que três ou quatro gatos-pingados - eu entre eles - e nunca passava disso. Com o fim da disciplinas dele, e o começo de outras mais complicadas, o pessoal dispersava e acabava abandonando o "grupo". Mesmo os mais animados não duravam muito. Todos acabavam caindo fora cedo ou tarde. Mas o ilustre professor jamais desistia. Sempre que nos encontrávamos pelos corredores ele contava alguma nova mazela ou sujeira que estava em andamento, expressava sua profunda indignação e proferia seu bordão, "Precisamos nos organizar". E todos os anos que estive na faculdade, isso foi desse jeito. Já no final do curso, ele era bem menos enfático e, talvez, pelo peso dos anos - ele não era um jovenzinho -, já não se dava aos arroubos de outrora.
     Hoje sinto aquele desalento pelo que vejo ao meu redor. As pessoas são vazias, chatas, protocolares, certinhas, profundamente cínicas e pasteurizadas. Quem de vez em quando se dá ao luxo de meter a boca no trombone, o faz muito privadamente, e procurando o mínimo de consequências possível. Me parece que há um medo de se expressar, expressar opiniões contrárias ao estabelecido; ninguém quer contrariar, discordar ou apenas bagunçar o coreto pra ver se a coisa se reacomoda de outra forma. Nada. As conveniências são fortemente condicionadas pelo medo - da retaliação, exclusão, discriminação. E assim, tudo fica muito chato.
     Assim, hoje eu vejo que o professor Orlando não era um excêntrico, era um profeta! Ele dizia que o mundo estava ficando chato, e caminhando inexoravelmente para uma chatice insuportável. E estava acontecendo isso por que as pessoas chatas estavam tomando conta de tudo. Quem aguenta ficar até o fim da reunião de condomínio? da reunião de departamento? do conselho de professores ou alunos? das comissões? das plenárias? Só os 4% mais chatos. Mas há um detalhe: as votações, que é onde as coisas são decididas, só acontecem no final, depois que as pessoas normais, razoáveis e racionais já desistiram do porre que são os chatos. Ou seja, os chatos decidem. Quem não tem saco pra ficar se estapeando com os anódinos e insossos acaba sendo penalizado pela sua falta de paciência. E vai ter que cultivar muito mais paciência pra lidar com o que vier depois. E não vai ser pouco.

3 comentários:

Anônimo disse...

Esse é o maior problema: a falta de paciência. Quanta coisa nós pensamos em fazer, quantas coisas nós começamos a fazer, porém a ansia de resolver os problemas do mundo - porque as vezes acreditamos ter esse poder - nos faz querer ver os resultados imediatamente. Isso não ocorre,aí os empecilhos aparecem, começamos a desanimar, a desacreditar. E já era... melhor seguirmos nossas vidas e ganharmos nosso dinheiro. Será?A vida é mesmo chata, sempre a mesma coisa.

montagna disse...

Não me importo em esperar um ovo chocar ou um queijo curar à sombra. Sim, muitas coisas na vida precisam de tempo pra maturar. Aturar os chatos requer algo que eu nunca tive: paciência com gente pequena, chatinha, meticulosa, entupida de falso-moralismo e que fala as coisas da boca pra fora, com dedos e lôgro por qualquer coisa que não seja o canônico, o apropriado e "correto". Paciência eu tenho com quem quer crescer, aprender, lutar, ousar, fazer o novo, fazer mais, se superar. Os medíocres não suportam ver sua mediocridade, por isso eles costumam ser os chatinhos. Paciência? Sinceramente, acho que tenho até demais...

V. disse...

É triste pensar como as pessoas se escondem na massividade da inercia.
A inercia é tédiosa mas sempre "cômoda", dificil ver alguem querer sair e gritar por algo melhor.
O fato é ser um 4% de qualquer coisa exige um esforço alem da inercia, que muitos não estão dispostos a pagar. A não-inercia erroneamente é associada ao caos. Será? E se for, é tão ruim assim?
Na ditadura militar existiram esses poucos, que se arriscavam por consequencias muito piores.
Hoje do que tememos tanto? Não existe mais mordaças ou prisões, mas ainda sim temos tanto medo de falar... Eu deixo a pergunta, por que? Por que não somos mais impacientes em relação a inercia? Por quê???